Peter Hotez: “As coisas ficaram muito sombri…

Peter Hotez tem um ar bonachão: bigode, cabelos esvoaçados, gravata-borboleta… Mesmo assim, o pediatra e cientista americano tem sido pintado na internet como um grande vilão, parte de uma conspiração internacional para matar pessoas.

O motivo? Seu envolvimento na produção de imunizantes contra a covid-19 e seu combate frontal ao movimento antivacina.

Hotez, que é codiretor do Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Texas Children’s Hospital Center e reitor da Escola Nacional de Medicina Tropical da Baylor College of Medicine, trava essa batalha há anos.

Em 2018, escreveu um livro desmitificando a relação entre vacinas e autismo. Em 2023, publicou o livro The Deadly Rise of Anti-Science* (“A ascensão mortal da anticiência”, ainda sem tradução no país), e agora prepara mais uma obra, em parceria com um cientista do clima.

Em entrevista exclusiva, ele esboça um panorama da situação atual dos Estados Unidos — com surto de sarampo e políticos antivax no governo de Donald Trump — e o perigo desses movimentos para o mundo.

VEJA SAÚDE: O senhor construiu sua carreira em cima de vacinas. Como foi a experiência de trabalhar com isso em meio a uma pandemia?

Peter Hotez: Sou um cientista de vacinas. Há cerca de 15 anos, começamos a estudar imunizantes contra outros coronavírus, causadores da Sars e da Mers [variações do patógeno que causaram surtos em 2002 e 2006].

Foi por causa disso que conseguimos desenvolver uma vacina de baixo custo para a covid-19. O fruto dessa tecnologia foi aplicado em 100 milhões de pessoas na Índia e na Indonésia. Como fui um dos poucos americanos que desenvolveram imunizantes, também passei muito tempo conversando sobre o assunto com as pessoas por meio da imprensa nacional e internacional e com jornalistas como você.

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Também tenho uma batalha antiga contra o movimento antivacina, tanto que escrevi um livro sobre a relação entre vacinas e autismo baseado na história da minha filha, que é autista.

Isso me colocou como o inimigo público número 1 dos antivacina. Então também atuei nessa frente. Enfim, os cinco últimos anos foram intensos!

O que destaca como legados, positivos e negativos, da crise da covid-19?

O mais positivo é o fato de que a tecnologia está tão avançada que podemos fazer rapidamente uma vacina contra quase todos os patógenos potencialmente pandêmicos, com diferentes métodos, por meio de RNA, DNA, vetor viral, proteína recombinante, vírus inativado…

Por outro lado, a capacidade técnica superou nossos instrumentos sociais, econômicos e políticos para tornar os imunizantes acessíveis.

E temos também, é claro, o maior problema de todos, o crescimento da desinformação, que atrapalhou não só a vacinação, mas a implementação de outras medidas de saúde pública. Estimo que 200 mil pessoas morreram desnecessariamente nos Estados Unidos apenas por recusarem vacinas. São vítimas de um movimento antivacina agressivo.

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Então acho que a pandemia despertou o melhor da ciência e o pior do movimento anticiência. E esse com certeza será nosso principal desafio daqui em diante.

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Você enfrenta inúmeros ataques nas redes sociais e na imprensa. Já foi acusado de ficar milionário com a covid-19 e de fazer parte de grandes conspirações globais. Pode contar como lida com isso?

Esses ataques já aconteciam, mas aceleraram durante a pandemia e me tornei um alvo político, mesmo que eu não me considere uma pessoa política.

Por contrapor a narrativa dos desinformadores, sobre vacinas ou sobre a origem do vírus, eles me retrataram como um inimigo da sociedade, uma coisa meio vilão de história em quadrinhos, e aí a situação ficou tenebrosa.

Agora preciso de segurança quando vou dar palestras, pessoas vêm à minha casa, me ameaçam, enviam cartas, fazem ligações… Também há muito antissemitismo, porque sabem que sou judeu, então enviam suásticas pelo correio.

Sou cientista, judeu e pesquiso vacinas. São três “razões” para as pessoas me atacarem. Infelizmente, as coisas ficaram muito sombrias nos Estados Unidos.

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E como estão agora, depois do auge da pandemia e com a volta de Donald Trump ao poder?

Agora esse movimento está atingindo vacinas básicas da infância, e um dos principais ativistas antivacina, Robert Kennedy Jr. (RFK Jr.), é nosso secretário de Saúde.

Minha história de embate com esse sujeito remonta a 2017, quando o Instituto Nacional de Saúde americano me convidou para conversar com ele sobre a relação entre vacinas e autismo. Tivemos longos diálogos, ele mergulhou fundo em suas teorias e, desde então, sou atacado por ele.

Mas a coisa ficou feia mesmo em 2023, quando comecei a ser assediado por pessoas como Joe Rogan [proeminente comunicador ligado à extrema-direita dos EUA] e Elon Musk para debater publicamente com Kennedy sobre as vacinas.

Não quis fazer isso, porque passa a mensagem errada para os jovens cientistas de que a ciência é algo a ser debatido com lunáticos, e não é. Fazemos debate científico por meio de artigos, congressos, revisões, não dessa forma.

Enfim, os ataques estão piorando, e agora não estamos falando de trolls na internet, mas também de ativismo antivacina nos mais altos níveis do governo americano. Isso é assustador.

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Há notícias sobre cortes de financiamento para a ciência e ataques a universidades nos EUA. Vocês já estão sendo afetados?

Por enquanto, ainda não sabemos bem o que é real e o que é apenas ameaça. O Departamento de Eficiência Governamental (Doge), de Elon Musk, tentou cortar recursos dos Institutos Nacionais de Saúde, que são o principal financiador de pesquisa médica no país, mas essa decisão foi revertida judicialmente.

Não está claro o que vai acontecer, mas sabemos que haverá impacto, então estamos nos preparando para isso.

Há um surto de sarampo nos EUA, que afeta principalmente seu estado, o Texas. Qual é a origem do surto e qual é a situação atual?

Ainda em 2016, publiquei um artigo apontando para o risco de uma epidemia de sarampo no Texas. Era algo previsto e previsível. A principal causa do surto é o ativismo antivacina. Ele cresceu em todo o país nos últimos 20 anos, mas ainda mais no Texas.

O estado é um maravilhoso centro de inovação médica, com grandes instituições de pesquisa importantes para o mundo todo e hospitais de referência. Mas, paradoxalmente, se tornou o epicentro do movimento antivacina.

Por que isso aconteceu?

Graças à apropriação da pauta por políticos há cerca de 15 anos. Hoje, temos cerca de 100 mil crianças no estado que não estão adequadamente vacinadas, especialmente em regiões mais rurais e conservadoras.

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Essas crianças são para os surtos de sarampo o que a água quente do Caribe é para os furacões. Quanto mais aquecida a água, mais furacões enfrentaremos. Um raciocínio semelhante vale para as populações não vacinadas.

Agora temos 40 crianças internadas por sarampo e pelo menos uma morte confirmada. E a epidemia segue forte, sem sinal de que irá arrefecer tão cedo.

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(Ilustração: Zansky/Veja Saúde)

Qual é a sua visão sobre os rumores de que os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) do governo americano irão investigar o elo entre vacinas e autismo?

Seria trágico se realmente acontecesse. Eu escrevi um livro todo sobre isso, chamado Vaccines Did Not Cause Rachel’s Autism* (“As vacinas não causaram o autismo de Rachel”, em tradução livre). Minha filha, a Rachel, nasceu nos anos 1990, mas escrevi o livro há cerca de oito anos, após minhas longas conversas com RFK Jr.

Na obra, ofereço uma explicação profunda, baseada em evidências, mostrando que não há ligação entre as duas coisas.

Sabe, os antivacina vivem mudando suas alegações. Primeiro, era uma vacina específica; depois, era um conservante específico, o timerosal; mais tarde, o alumínio nas fórmulas; depois o fato de que damos imunizantes demais… E isso tudo acontece porque a indústria do bem-estar [wellness, em inglês] está faturando com suplementos ao desacreditar as vacinas.

Então não há ligação entre autismo e vacina…

Todas essas alegações são falsas. Mas, ainda assim, isso não é o suficiente, porque os pais podem se perguntar: “Então o que causa autismo?” Para responder a isso, detalhamos as bases genéticas do transtorno.

Mais de 100 genes já foram associados ao autismo. Nós fizemos, inclusive, o sequenciamento do genoma da minha filha, e descobrimos que ela tem uma mutação em um gene envolvido nas conexões entre neurônios.

E agora temos estudos dos mais variados, evidências detalhadas mostrando não só que as vacinas não causam autismo, mas que seu início ocorre nos estágios mais precoces do neurodesenvolvimento do feto, ainda na barriga da mãe, muito antes de as crianças nem sequer terem contato com qualquer tipo de vacina.

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Quando você escreveu o livro, em 2018, imaginaria que esse assunto ainda seria tão relevante?

Não, achei que já teríamos superado isso. É muito triste ver tudo ressurgindo e ganhando força agora com RFK Jr. e outras pessoas no comando da saúde.

É um movimento autodestrutivo, que nem sequer faz sentido do ponto de vista científico.

O senhor tem destacado a ascensão do movimento anticiência. Podemos dizer que ele chegou de vez ao poder?

Sim, com toda certeza. É desencorajador, porque os Estados Unidos são um país construído com a força de suas universidades, não apenas as Harvards e Yales da vida, mas também as universidades estaduais.

O que preocupa é que essa rede é frágil e podemos perder muita coisa com a ascensão do movimento anticiência ao poder.

E quais seriam as repercussões disso para o mundo?

Assim como os EUA gostam de exportar seus filmes e músicas, agora estamos exportando pseudociência e ataques a cientistas. E o ecossistema global de vacinação também é frágil.

Existe uma preocupação, inclusive da própria Organização Mundial da Saúde, de que surja um movimento antivacina global, como me disse em algumas oportunidades Tedros Adhanom, o diretor da OMS.

O movimento antivacina está mais forte ou só mais barulhento?

As duas coisas, e, infelizmente, está se globalizando, afetando países de baixa e média renda, na África e na América Latina. Por anos, parabenizei sociedades de pediatria de outros países por não se deixarem contaminar pelo antivacinismo americano. Mas isso está mudando agora.

Ano passado estive no Brasil para dar uma palestra, e foi triste ver o impacto do governo Bolsonaro na vacinação e o ativismo contrário às imunizações ganhando terreno.

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Além do sarampo, os EUA também estão lidando com a gripe aviária em animais. Como avalia o risco de ela causar uma nova pandemia?

Já tivemos 70 casos de influenza H5N1 em humanos no país, em pessoas que tiveram contato com gado ou aves infectados.

Até agora, não há registro de transmissão entre humanos, mas, quanto mais desses encontros entre espécies acontecerem, eventualmente você pode ter mutações o suficiente para a disseminação do vírus entre nós, o que seria uma coisa muito perigosa. Acredito que isso irá ocorrer, mas não dá para saber quando e nem que impacto terá.

Só que, antes de chegar a gripe aviária, já temos casos de coqueluche, vírus da poliomielite nos esgotos, há muitas infecções infantis que preocupam por causa da falta de vacina. Só vemos o sarampo primeiro por ele ser mais transmissível.

O governo dos EUA está preparado para uma epidemia de gripe aviária?

Não sei dizer. Na administração anterior, de Joe Biden, sabia que estavam desenvolvendo vacinas com diferentes tecnologias, mas não sei o que estão fazendo agora.

Só espero que estejam estocando imunizantes e levando isso a sério, e que outros países façam o mesmo.

Por quê?

Lembre-se de como funciona. O vírus H5N1 circula em aves migratórias, que vão anualmente do norte para o sul. Não à toa, já vimos casos em outros anos em aves e mamíferos no Chile, na Argentina, no Brasil…

Ou seja, não é um problema só dos EUA, todos precisam ter seus planos para a produção rápida e armazenamento de vacinas. Felizmente, o Brasil já tem um robusto sistema de desenvolvimento e fabricação de imunizantes, liderado pelo Instituto Butantan e pela Fiocruz.

Você mencionou a polêmica em torno do debate com RFK Jr. Eu também costumo escutar que precisamos ouvir “o outro lado”, de quem critica as vacinas. Como encara esse dilema?

A questão é que não estamos lidando com fatos científicos do outro lado. Não é como se dois físicos estivessem discutindo mecânica quântica. Estamos falando de malucos que ganham dinheiro com a internet e não têm nenhum compromisso com a verdade.

Eles dirão qualquer coisa para fazer dinheiro ou ganhar poder político. E acho que é um erro engajar-se com pessoas assim.

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Apesar de todos os ataques e até ameaças físicas, o senhor continua presente na mídia e dando entrevistas como essa. Não desiste mesmo…

Sabe, eu sempre quis trabalhar com vacinas, então direcionei toda a minha carreira acadêmica, até o pós-doutorado, para essa área. Já trabalhei no desenvolvimento de vacinas baratas, que salvaram milhares de vidas e não dependeram da grande indústria farmacêutica para chegar a quem precisa.

Isso foi muito significativo, mas percebo agora que grande parte desse trabalho envolve também se colocar ativamente contra o movimento antivacina, porque isso salva vidas tanto quanto a disponibilização dos imunizantes em si.

Existe uma ideia dominante de que a ciência é neutra e, portanto, não deve se envolver em política. O que você pensa disso?

Eu fui treinado dessa forma, ensinado a não falar sobre republicanos ou democratas, liberais ou conservadores. Mas não fomos nós que criamos esse problema, foi a extrema-direita. Eles colocaram o movimento antivacina na TV, em podcasts, no Congresso… E isso agora está matando americanos.

Se é preciso se posicionar politicamente para salvar vidas, então é isso que se deve fazer. Me vejo em uma posição muito desconfortável, mas não porque me importo com a posição política dos outros, mas porque precisamos encontrar um jeito de desvincular o movimento anticiência da política. E isso é algo muito difícil de fazer, porque agora eles estão bastante entrelaçados.

O senhor me contou que está escrevendo um novo livro. Qual é o foco desse trabalho?

Primeiro, devo dizer que o último publicado, The Deadly Rise of Anti-Science, está sendo traduzido para o português e deverá ser lançado ainda este ano no Brasil, em parceria com a Fiocruz.

Agora estou trabalhando na obra Science Under Siege [algo como “ciência sitiada”, em tradução livre], com o pesquisador Michael E. Mann [referência mundial em estudos sobre clima]. Tivemos a ideia de escrever o livro ao notarmos diversas intersecções entre desinformação climática e aquela relacionada à saúde.

Os ataques a cientistas dessas duas áreas não se sobrepõem totalmente, mas são parecidos, como discutimos ali. O livro deverá ser publicado ainda este ano nos Estados Unidos e também será lançado no Brasil.

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