J. D. Nasio: “Minha prioridade é fazer com q…

Em seu consultório em Paris, os pacientes são recepcionados em um ambiente caloroso. As paredes em tons alaranjados se iluminam com o sol que bate nas janelas. Reproduções de telas de Pieter Bruegel e Mark Rothko adicionam um ar vibrante ao espaço.

Em endereço europeu, o argentino Juan David Nasio recebe as mais curiosas queixas psicológicas — para as quais sempre busca encontrar uma saída.

Nascido em 1942, em Rosário, radicou-se na França para se aproximar dos grandes nomes da psicanálise. Conheceu o famoso Jacques Lacan e, a seu pedido, revisou a edição em espanhol de Escritos, uma peça fundamental da disciplina.

Lecionou por três décadas na Universidade de Paris VII-Sorbonne e ainda rompeu fronteiras com 37 livros publicados em todo o mundo — boa parte deles disponível no Brasil.

O último deles, Dez Histórias de Vida, Sofrimento e Amor (clique aqui para comprar)*, acaba de chegar às livrarias pela editora Zahar. A VEJA SAÚDE, a sumidade expõe os velhos e novos desafios de manter o equilíbrio mental.

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O senhor tem mais de 25 livros publicados no Brasil. Como Dez Histórias de Vida, Sofrimento e Amor se insere nessa trajetória? Qual é a principal mensagem que quer passar aos leitores?

Antes de tudo, esse é um livro de histórias reais, que ocorreram com pacientes meus. O primeiro caso que eu recebi no meu consultório ocorreu em janeiro de 1965. Então, tenho 60 anos de experiência clínica como psiquiatra e psicanalista.

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Aqui na França, há uma rádio popular, com cerca de 7 milhões de ouvintes, que me convidou a contar causos que vi ao longo dessas décadas — e assim o fiz, em um programa dominical, ao longo de 2022.

São histórias muito fortes, seja por carregarem dor e sofrimento, seja por despertarem simpatia. E, por meio da psicoterapia, elas terminam bem.

Meu último livro aborda como o processo terapêutico pode ajudar a sanar as mais diversas aflições que o ser humano está passível de sofrer, desde fobias sociais e distúrbios alimentares até o fim de um relacionamento ou a perda de um bebê há muito desejado.

Como esses casos se entrelaçam nessa coletânea?

Há um fio condutor que os atravessa. Um ponto em comum que tento ressaltar é a maneira humana de trabalhar que deve ser estabelecida entre o terapeuta e o paciente. Eu nutro um grande apreço pelos meus e trato de ser útil a eles.

Em consultório, tratamos confidências. E é muito difícil confiar sua intimidade a alguém. Mesmo que esse alguém seja um médico, instruído e comprometido a tratar qualquer tema de forma respeitosa, é complexo.

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No início do livro, o senhor fala da importância de criar um ambiente propício para esse processo. O que é essencial a uma jornada transformadora? 

O ambiente terapêutico deve ser acolhedor, mas, como digo no livro, isso pode variar muito de profissional para profissional. Até o divã, que é tido como símbolo da nossa função, pode ser substituído por poltronas viradas uma de frente para a outra ou por caminhadas ao ar livre — sem prejuízos.

O importante mesmo é ter um ideal. O meu é ser útil aos pacientes. É preciso querer ajudá-los a resolver seus problemas. Não se trata de apenas criar uma boa relação, mas de estabelecê-la para que o sofrimento deles desapareça.

Minha prioridade número 1 é fazer todo o possível para que as pessoas tenham menos conflitos e sofram menos. 

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“É muito difícil confiar sua intimidade a alguém. Mesmo que esse alguém seja um médico, instruído a tratar qualquer tema de forma respeitosa” (Felipe Tadashi/Divulgação)

Como é o caminho até esses resultados?

Eu utilizo quatro instrumentos. O primeiro é a observação. Fico atento aos detalhes no semblante, no rosto, nas mãos — se suam, se estão apertadas, se as unhas estão roídas —, na gestualidade, na respiração, no cheiro. Excessos e dependências, como do álcool e do fumo, podem transparecer nesses detalhes.  O olhar, o tato, as dores pelo corpo… São outros pontos aos quais os terapeutas devem estar alertas.

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O segundo instrumento é a compreensão, ou seja, tratar de assimilar o que está acontecendo objetivamente com aquela pessoa e, além disso, identificar os conflitos íntimos e internos que muitas vezes o próprio paciente não tem clareza ou consciência de que existem.

Na maioria das vezes, ele está preocupado com um problema pontual, mas há muitos outros conflitos subjacentes e mais profundos nos rodeando. Para compreendê-los por meio do que o sujeito me diz, é necessário contar com a experiência clínica e com a razão. Isso é fundamental para entender quem de fato está à sua frente.

O terceiro instrumento tem tudo a ver com isso e é o mais delicado: a empatia, a maravilhosa empatia. Observar o paciente, compreender como ele se sente e imaginar a emoção que ele carrega para que isso te mova a ajudá-lo. São muitos anos dedicados a esse processo, o que acaba tornando natural esse exercício de afastamento e aproximação do outro.

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E o quarto instrumento?

O último é a palavra. É preciso saber usá-la de forma justa em cada ocasião. À medida que você vai se tornando uma pessoa mais empática, vai encontrando as palavras mais pertinentes, oportunas e apropriadas para que elas ajudem a revelar ao paciente seus conflitos e possíveis soluções com mais clareza.

Então, o terapeuta precisa ser um observador muito bom; alguém com muita experiência e que compreenda bem o que o outro diz; e é preciso ter uma grande disponibilidade emocional, saber sentir o que o paciente sente. Por fim, ele tem que saber conversar, dizer as palavras adequadas no momento oportuno para que acalmem e esclareçam.

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Nessa obra, que chega ao Brasil junto com a comemoração dos seus 60 anos de carreira, você dedica um capítulo a Françoise Dolto, uma de suas mestras na arte da psicanálise. O que aprendeu com ela e gostaria de ensinar a outros terapeutas?

O que aprendi e sigo à risca é que, acima de todos os quatro instrumentos, há algo mais importante que eu gostaria de dizer: o desejo do terapeuta de ir ao encontro do paciente, de conhecê-lo. É preciso ter interesse para conseguir ajudá-lo. Sentir vontade de adentrar seu mundo interior.

É preciso haver o desejo de ir até ele. Dolto foi uma grande mestra, psicanalista e amiga, que dedicou sua vida a atender crianças e nos ensinou a desempenhar esse papel, a utilizar esses instrumentos com humildade e sensibilidade.

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Criar conexões mais empáticas e profundas, como você propõe, é também uma forma de amar? 

Pode-se dizer que sim, mas uma forma muito diferente do amor em que costumamos pensar. Desde os gregos, fomos apresentados a diversas formas de amar. O Eros, marcado pelo desejo sexual e a busca pelo prazer; o amor divino, Ágape, dedicado a Deus; o amor de um familiar pelo outro ou entre grandes amigos.

E eu defendo que nós somos movidos por uma pulsão de amar, que chamo de amância [palavra cunhada por Nasio que carrega a ideia de uma “tendência a amar”].

É nesse campo que considero que pode se encaixar esse interesse em ajudar o outro, sem nenhuma contrapartida. No caso da empatia evocada pela terapia, trata-se de um amor profissional, distante. Ainda que ele torça pelo outro e fique muito feliz por seu progresso, é uma relação social muito diferente de qualquer outra. E precisa ser assim. Essa é a nossa base.

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Hoje as pessoas estão mais abertas a procurar a psicoterapia, não?

A busca por soluções rápidas, por meio de medicamentos, ainda é a preferência da maioria — e eles são muito bem-vindos para o controle dos sintomas depressivos, ansiosos etc. Mas a psicoterapia é o padrão ouro de tratamento para diversas condições mentais.

Felizmente, o estigma sobre transtornos mentais tem diminuído muito e, consequentemente, a população tem se sentido mais à vontade para buscar os tratamentos corretos.

Hoje em dia, psicólogos, psicanalistas e psiquiatras são consultados com mais facilidade. As pessoas têm menos medo da loucura e de serem consideradas loucas — por parentes, amigos e seus próprios médicos. Isso facilita o processo de cura ou a busca pela cura.

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“Felizmente, o estigma sobre transtornos mentais tem diminuído muito e, consequentemente, a população tem buscado tratamentos” (Felipe Tadashi/Veja Saúde)

Estamos vencendo o estigma?

Quanto menor o preconceito, maior o número de consultas feitas por todos nós. Além disso, o cinema e a televisão também têm um papel fundamental em desestigmatizar doenças mentais.

Aqui na França, uma série se tornou muito popular após a pandemia. Chama-se Em Terapia [não disponível no streaming, mas há uma versão brasileira chamada Sessão de Terapia, da GNT, com Selton Mello]. Ela reflete muito bem o trabalho de um psicólogo e ajuda as pessoas a se sentirem mais relaxadas e encorajadas a procurar terapia. 

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Pesquisas mostram que as minorias estão mais predispostas a desenvolver transtornos como ansiedade e depressão. Como deve ser feito o atendimento de populações vulneráveis?

É preciso ter atenção a isso. As mulheres, especialmente, estão mais suscetíveis a fatores de estresse e costumam apresentar mais traços depressivos do que os homens. A depressão, como costumo dizer, é a perda de uma ilusão, o adoecimento da mente diante de uma desilusão, quando a realidade não alcança as nossas expectativas.

É um transtorno que merece todo o cuidado e atenção, inclusive de campanhas nacionais e esforços internacionais de prevenção, já que o paciente depressivo está vulnerável a uma espiral de sentimentos — como a tristeza, o entorpecimento e a apatia —, que podem colocar sua própria vida em risco, em casos mais graves.

Também destacaria o atendimento a crianças e adolescentes, parte importante da minha formação e atuação. Os pais estão mais conscientes sobre a importância e o momento oportuno de levar os pequenos ao consultório. As escolas também ajudam a identificar casos que precisam de ajuda especializada, por quaisquer motivos.

Nesse processo, é muito importante entender a demanda que os pais trazem, mas principalmente ouvir o que a criança tem a dizer e observar seus comportamentos. Ela é a protagonista do processo terapêutico e é preciso criar um espaço onde ela se sinta acolhida e segura.

Em 2025, completamos cinco anos desde o início da pandemia de covid. Como esse período prejudicou e ainda prejudica a nossa saúde mental?

Houve um grande aumento de casos depressivos ao longo da crise sanitária. Milhões de pessoas perderam entes e amigos queridos e não puderam se despedir deles de maneira adequada por causa das medidas de contenção da covid-19. Muitos enfrentaram infecções graves e risco de morte.

Mas mesmo aqueles poucos que saíram ilesos dessa experiência coletiva foram prejudicados pelo isolamento do período. Como médico e humanista que sou, a pandemia foi terrível também pelo distanciamento que foi necessário para proteger pais e filhos, irmãos e amigos, colegas de trabalho.

A nossa saúde mental é nutrida pela unidade, pela proximidade, pela confiança entre uma pessoa e outra. E isso foi se perdendo em meio à crise global, porque as pessoas tinham medo de chegar perto umas das outras.

O afastamento propiciou um crescimento de casos de depressão, que chamei de “depressão covid”, e de estados neuróticos. 

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Em sua obra, você faz a distinção das neuroses em três perfis: o fóbico, o obsessivo e o histérico. Pode explicar aos nossos leitores como isso se dá na prática e como essas tendências psíquicas afetam o dia a dia?

Primeiro, vamos definir neurose. A neurose é um estado de perturbação que está intimamente ligado ao estado normal — ambos são quase indistinguíveis. É muito difícil traçar uma linha entre o que é normal e o que é patológico.

Por isso, dedico o quarto capítulo do livro [Lúcia e os 40 termômetros: A neurose, no qual uma mãe é obcecada em checar a temperatura corporal da filha pequena] ao leitor, porque todas as pessoas são neuróticas em algum grau — cada uma à sua maneira.

Basicamente, sofremos um trauma, geralmente ainda na infância, e isso gerará consequências na nossa personalidade.

A partir de uma experiência traumática, nutrimos ideias (medos, inseguranças, compulsões) que não se sustentam na realidade. São fantasias que alteram os nossos padrões de comportamento e de como nos sentimos no mundo. Qualquer pessoa está sujeita à neurose, e, sinceramente, pode não haver muita diferença entre um estado normal e um estado neurótico.

No entanto, às vezes temos tendências mais fóbicas, mais obsessivas ou mais histéricas de manifestar isso.

E aí podem aparecer repercussões mais sérias?

As nossas neuroses, esses estados incômodos, sempre vão girar em torno de três sentimentos fundamentais: a angústia, a impotência e o amor.

A neurose fóbica é caracterizada pela angústia, o medo de enfrentar determinadas situações, pessoas ou até mesmo objetos. A fobia está muito relacionada à ansiedade, à antecipação de desfechos que nem sequer vão acontecer, mas paralisam o sujeito pela mera possibilidade de ocorrerem.

Já o paciente com neurose obsessiva trata bastante de uma sensação de impotência, de não conseguir concluir ou alcançar algo, ou, ainda, o medo de não ser reconhecido. O obsessivo está sempre em conflito com alguém pela sensação de não ser reconhecido em seu verdadeiro valor.

Por fim, temos também a neurose histérica, que está relacionada ao amor, a constantes complicações na vida amorosa. Impotência e ansiedade nem são tanto o problema de alguém com esse tipo de neurose. O desafio dele é saber amar e ser amado.

É aquela pessoa que está sempre preocupada se o amor em determinada relação  é suficiente e que tem dificuldade de estabelecer um relacionamento romântico.

Essa é a histérica, caracterizada por sofrer por amor. Explorar essas três faces da neurose foi um dos meus principais objetivos nessa nova publicação.

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E há mais livros por vir? Que temas pretende explorar em novas obras? 

Na verdade, sim! Atualmente estou trabalhando em um novo livro, que tratará sobre amor também, mas especificamente sobre a vida a dois. Em todos esses anos, recebi em meu consultório muitos casais que se amavam, mas também muitos que viviam discutindo.

Muitos casais heterossexuais, mas também cada vez mais casais homoafetivos. Posso garantir que a essência do amor é a mesma, independentemente do gênero ou identidade sexual dos parceiros envolvidos.

Quero aprofundar algumas ideias que cito no capítulo O buquê do amor ou O amor do casal, que compõe a obra que chegou agora ao Brasil.

Nela, elenco alguns componentes presentes em qualquer relação amorosa, como o desejo sexual, a admiração e o medo de ser abandonado. É um tema inesgotável. Um princípio da vida.

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Dez histórias de vida, sofrimento e amor

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Dez histórias de vida, sofrimento e amor

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