Creatina: a surpreendente verdade sobre o su…

A indústria do fitness, de braços dados com a do wellness (termos que remetem ao hoje midiático universo do bem-estar), não para de crescer no Brasil. Só o número de academias triplicou na última década, num setor que impulsiona cerca de 8 bilhões de reais por ano.

O movimento se espalha por estúdios de pilates e treino funcional, boxes de crossfit, arenas esportivas e corridas de rua. E isso é extremamente positivo, pois reflete um engajamento em uma das medidas mais potentes para a prevenção de doenças, a atividade física.

Mas, na esteira desse fenômeno que tomou o mundo real e o digital, quem também ganhou musculatura foi a indústria de suplementos. “Treino e tomo whey e creatina!” virou quase um mote não só entre ratos de academia, mas entre mulheres de meia-idade que acabaram de começar a malhar, adolescentes que só fazem aulas de educação física na escola ou mesmo idosos ávidos por turbinar o desempenho.

A impressão é que, para alavancar os resultados e a própria saúde, tornou-se obrigatório tomar sua dose, em pó ou cápsula.

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A fome por esses produtos já se faz sentir no mercado. A Associação Brasileira de Suplementos Alimentares (Brasnutri) calcula que nosso país é o terceiro no ranking global dos que mais consomem produtos do gênero, perdendo apenas para Estados Unidos e Austrália.

A prática viralizou — inclusive fora das redes sociais. A ponto de quase ser um sacrilégio, ao menos para muitos influencers, ter gente se exercitando sem complementar sua cota de nutrientes com shakes, pílulas, gominhas… Nesse cenário, recheado de promessas hipertrofiadas, nenhum outro suplemento ficou tão em alta como a creatina.

Nas farmácias brasileiras, segundo levantamento da consultoria Close-Up International, a venda de creatina registrou um crescimento de 67% nos últimos cinco anos — o que corresponde a um aumento de 92% no faturamento do segmento. A demanda online acompanha: ela foi o produto mais vendido pela plataforma Mercado Livre em 2022, e o termo “creatina” já superou “whey protein” nas pesquisas do Google.

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Seu grande trunfo é que, em meio a um mar de cápsulas que carecem de comprovação científica, ela é um dos poucos suplementos com alto nível de evidência para o desempenho esportivo, demonstrando impacto no ganho de força muscular e resistência.

Só que, muito além desses efeitos devidamente testados, multiplicam-se na internet alegações de benefícios que vão do controle do açúcar no sangue à melhora da saúde cerebral — com direito a papéis diante do Alzheimer e do autismo. Sim, parece uma panaceia. Mas será que ela é tudo isso mesmo?

Nesta reportagem, você vai conferir:

  • O básico sobre a creatina: o que é, como funciona e a evolução dos estudos;
  • Para quem creatina funciona e qual a magnitude do efeito;
  • Creatina faz mal para os rins?
  • Mitos e verdades sobre a creatina (se faz cai o cabelo, prejudica a pressão, gera infertilidade masculina, etc);
  • Creatina serve para maratonas?
  • Creatina faz bem para idosos?
  • Vegetarianos precisam de creatina?
  • Creatina ajuda no controle glicêmico?
  • Creatina pode ser tomado por crianças? Melhora o autismo?
  • Creatina funciona para cognição e memória?
  • Creatina tem ações em transtornos psiquiátricos, como depressão e ansiedade?
  • Creatina protege contra distúrbios degenerativos, como Alzheimer e Parkinson?
  • Os perigos da falsificação de creatina.

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Existem alegações demais sobre os benefícios da creatina. Mas serão todas verdade? (Foto: Adobe Firefly/Veja Saúde)
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O básico sobre a creatina: o que é, como funciona e evolução dos estudos

Para começo de conversa, o que exatamente é a creatina? O ácido metilguanidina-acético, seu nome científico, é uma substância fabricada pelo nosso próprio corpo, principalmente por rins, fígado e pâncreas, a partir dos aminoácidos arginina, glicina e metionina.

Ela foi descoberta em 1832 pelo químico francês Michel Chevreul em experimentos com extratos de carne animal. Mas demorou quase 100 anos para que se identificasse sua relação com o uso de energia pelo corpo na hora do esforço físico.

Em 1926, o cientista americano Alfred Chanutin supôs, baseado em testes de suplementação de creatina em ratos, que essa molécula era absorvida pelo intestino e que sua ingestão oral estava associada a um aumento no armazenamento do composto nos músculos.

Na década de 1930, o casal de pesquisadores britânicos Philip e Grace Palmer Eggleton realizou pesquisas com gatos utilizando eletroestimulação para simular contrações musculares. Foi através desses experimentos que se desvendou onde a creatina vai parar e como ela faz a sua mágica.

Em resumo, a dupla descobriu um processo chamado fosforilação (entenda no esquema abaixo) e demonstrou que a creatina funciona como uma reserva extra de energia.

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Quando a gente faz movimentos de alta intensidade e curta duração — com uma explosão muscular —, o corpo usa uma forma da creatina para regenerar o ATP (adenosina trifosfato), a principal fonte de energia das células. Assim, esse combustível a mais permite que a pessoa aguente, ao menos por um tempo, a finalização do exercício.

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Entenda como a creatina age no corpo (Foto: Adobe Firefly; Infográfico: Letícia Raposo/Estúdio Coral/Veja Saúde)

Mas engana-se quem pensa que a substância se restringe aos domínios da musculatura. “Há creatina em vários tecidos e órgãos, pois esse sistema em que ela atua aparece de maneira significativa em células que se contraem ou precisam de energia rápida, como as do cérebro, as dos músculos e até os espermatozoides”, explica o educador físico Bruno Gualano, do Grupo de Pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Universidade de São Paulo (USP), que investiga a molécula há cerca de 20 anos.

Estima-se que um adulto saudável produza 1 grama de creatina por dia, mas o componente também é adquirido por meio de alimentos de origem animal, em especial as carnes, e, claro, suplementos.

No início da década de 1990, finalmente surgiram estudos controlados em humanos sobre os efeitos da ingestão de creatina de fontes externas. O trabalho que fundamentou a base científica para seu uso como suplemento em esportes de força e potência foi publicado pelo bioquímico britânico Roger Harris em 1992, quando ele comparou o efeito da suplementação em músculos repousados e em músculos exercitados.

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Esse experimento foi seminal por três conclusões:

  1. É possível aumentar a concentração de creatina nos músculos através do consumo oral;
  2. A contração muscular disparada pelo exercício otimiza sua absorção;
  3. A resposta ao produto tende a variar individualmente: pessoas que já tinham níveis elevados de creatina (por genética ou devido à dieta) apresentavam menor ganho após a suplementação.

A consagração popular da creatina, por assim dizer, também veio naquele mesmo ano, na Olimpíada de Barcelona. Os atletas britânicos Linford Christie, vencedor da corrida de 100 metros rasos, e Sally Gunnell, campeã dos 400 metros com barreiras, comemoraram as medalhas agradecendo ao suplemento.

Ao somar esses feitos e descobertas a outros estudos sobre desempenho atlético, comprovou-se que a creatina podia melhorar a resposta aos exercícios intensos de baixa duração, como sprints, levantamentos de peso, saltos ou corridas de curta distância. Esse foi o primeiro boom da creatina.

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Creatina faz mal aos rins?

Mas o alvoroço durou pouco. Em 1998, uma pesquisa publicada no respeitado periódico The Lancet levantou a hipótese de que a creatina poderia causar sobrecarga renal, e isso teve um impacto enorme (até desproporcional) na percepção pública sobre a substância.

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No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) chegou a proibir a venda de creatina como suplemento alimentar e outros países também restringiram seu uso. Mas a informação não procedia da forma que foi difundida, como se confirmou logo depois.

Na verdade, o documento de 1998, apesar de ter sido publicado numa revista científica de peso, era apenas um relato de caso. No experimento, um ex-atleta de fisiculturismo consumiu 20 gramas de creatina por dia durante quatro semanas, seguidos por 2 gramas diários em manutenção.

Após o fim do teste, exames apontaram elevações nos níveis de creatinina, um subproduto do metabolismo muscular produzido pela quebra da creatina e eliminado pelos rins. Como o nível de creatinina no sangue é um marcador que avalia a função renal, os autores concluíram que houve sobrecarga.

Mas há poréns no relato que invalidam as conclusões.

  1. Primeiro: o fisiculturista de 25 anos possuía apenas um rim. Se a creatina é inocente nessa história, a injeção de anabolizantes não é, podendo inclusive terminar em insuficiência renal.
  2. Segundo: hoje já se sabe que a alteração nos níveis de creatinina é algo normal em casos de suplementação de creatina. É até lógico: se há mais substância no corpo, haverá mais resíduos no sangue.

“O uso da creatina, de fato, aumenta a creatinina sanguínea, mas isso não quer dizer que há uma disfunção renal”, esclarece o médico José Moura Neto, presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN).

“Na prática, a suplementação acaba invalidando a creatinina como um marcador laboratorial para avaliar a função renal, mas é possível utilizar outro exame nesses casos”, prossegue.

Atualmente, apenas por precaução, pessoas com histórico familiar de doença renal crônica ou problemas nos rins não devem tomar o suplemento sem orientação e acompanhamento médico. “O fato é que não existem estudos demonstrando que o uso da creatina é maléfico para os rins”, afirma Moura Neto.

Após anos de disputa entre pesquisadores e agências regulatórias, a creatina foi aos poucos sendo liberada pelo mundo, e, no país, seu retorno oficial se deu em 2010, primeiro com restrições, depois como suplemento alimentar de venda livre.

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Linha do tempo da creatina (Design: Letícia Raposo/Estúdio Coral/Veja Saúde)

Após 30 anos de dados robustos, a ciência já sabe o que a creatina faz, o que ela não faz e o que ainda está na chamada zona cinza, exigindo mais investigações.

Mesmo assim, a substância tem sido alvo de uma série de mitos, críticas e especulações por aí — para o bem ou para o mal. Não por acaso, Gualano e outros membros do grupo da USP publicaram duas grandes revisões recentes a fim de responder às dúvidas mais comuns, como o momento certo de tomar e se ela causa efeitos colaterais como queda de cabelo.

“Todo esse tempo em que a gente trabalha com creatina tem sido uma montanha-russa guiada por interpretações por vezes exageradas do mercado, das agências regulatórias e até da mídia, que retroalimentam o interesse das pessoas e exacerbam críticas e, ao mesmo tempo, expectativas irreais”, analisa o professor.

Nesse contexto, tirando o que já foi comprovado, todas as alegações acerca desse suplemento seguem o mesmo rumo que o caso dos problemas renais: são extrapolações de estudos pequenos ou com limitações metodológicas.

Mito ou verdade: creatina gera queda de cabelo?

“Sobre a queda de cabelo, há um único trabalho, de 2009, feito com um time de rugby, que demonstra aumento de DHT [forma do hormônio testosterona relacionada à calvície] em paralelo ao uso de creatina, mas havia diversos fatores de confusão que invalidavam o resultado”, conta o dermatologista Gabriel Cortez, preceptor do Grupo de Tricologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“A creatina ajudou os atletas a ganhar mais massa muscular, e pode ter sido o volume maior de músculos que elevou os níveis de testosterona e acabou piorando os quadros de calvície.” Em outras palavras, o suplemento não alimenta o processo por trás do afinamento e perda dos fios.

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Creatina prejudica a pressão arterial e outros mitos

Um caso parecido ocorre com as dúvidas plantadas sobre o efeito da molécula na pressão arterial — seria ela uma patrocinadora de hipertensão?

“Creatina é um suplemento seguro do ponto de vista cardiovascular, não causa aumento de pressão nem sobrecarga cardíaca”, crava o médico Silvio Póvoa, especialista em cardiologia do esporte pelo Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo.

Ainda assim, o expert recomenda o uso apenas com acompanhamento especializado. “Só um médico ou nutricionista consegue avaliar caso a caso e indicar a suplementação. Há medicamentos que eu prescrevo na cardiologia que podem acabar elevando discretamente o nível de creatinina, e, para averiguar isso, não indico o uso paralelo do suplemento”, ilustra. “O fato de ser seguro não dispensa a indicação”, completa.

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Mitos sobre a suplementação de creatina (Formatação quadro: Letícia Raposo/Estúdio Coral/Veja Saúde)

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Para quem creatina funciona e qual a magnitude de efeito

Qualquer suplementação, aliás, só deve ser ingerida com orientação profissional. Mesmo se a ideia for tomar creatina para melhorar a força e a resistência muscular. Sim, até nesse caso é prudente analisar a necessidade individual e a janela de oportunidade para que a creatina faça a diferença no organismo.

“Há vários fatores que são determinantes para o desempenho no exercício, e os suplementos que são eficazes têm um papel restrito nisso”, afirma o nutricionista e fisiologista do exercício Hamilton Roschel, também do grupo da USP.

Ele explica que a magnitude do efeito da creatina, de 3 a 5% de melhora no momento do esforço, é crucial para atletas de elite, de alto desempenho, pois uma variação mínima determina quem vencerá uma prova. Já para quem não quer ir a uma Olimpíada…

O fato é que, falando de pessoas como eu e você, que não treinam profissionalmente, o benefício da creatina tende a ser pequeno, quando não inexistente.

As flutuações de desempenho em um indivíduo de nível regular de treino e disciplina tendem a ser maiores do que a magnitude de efeito do suplemento, de tal forma que os benefícios acabam ficando diluídos e o custo/benefício provavelmente não está tão presente quanto as pessoas imaginam”, afirma Roschel.

O especialista continua: “Mesmo em pessoas que fazem treino de força quatro vezes por semana, é provável que a flutuação de desempenho seja maior do que esses 3 a 5% de benefício da creatina”. Por quê? “Porque elas não vivem para competir, não dormem todo dia igual, não controlam o estresse da mesma forma, enfrentam demandas diferentes no trabalho, na vida pessoal… Tem dia que comem melhor, dia que comem pior, dia que vão a uma festa, que bebem e não descansam ou se hidratam como deveriam… Todos esses fatores influenciam mais que o suplemento”, explica.

Então agora você pode estar se questionando: quer dizer que a creatina só seria útil para atletas? Na prática, depende da sua carga de exercícios, disciplina e objetivos. Algo que só uma consulta com um bom nutricionista ou médico do esporte pode determinar. Mas, na maioria das vezes, sim, só os esportistas de elite tiram bom proveito.

Por isso, uma análise pessoal e honesta antes de investir no suplemento cai bem.

  • Você realmente faz musculação de forma rigorosa, treinando no limite da falha ao menos cinco vezes por semana
  • Segue uma dieta regrada, com a ingestão adequada de proteína?
  • Dorme direito todos os dias?
  • Se hidrata bem, evita álcool e excessos?

Se a resposta for “sim”, talvez a creatina seja uma aposta interessante para incrementar resultados. Se for “não”, primeiro seria melhor organizar sua rotina — afinal, o estilo de vida influencia muito mais do que qualquer pó ou cápsula turbinada.

Lembre-se: a creatina é a cereja do bolo. Toda a massa, o recheio e a calda precisam estar preparados antes de ela ser realmente útil.

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A grande maioria da creatina do corpo fica nos músculos (Fotos: Evgeniy Lee e Djavan Rodriguez/Getty Images/Veja Saúde)

Creatina serve para corredores?

Agora, se o objetivo do seu treino for correr uma maratona, fazer uma trilha de ciclismo ou qualquer outro exercício que seja duradouro e constante, sem picos de explosão, a creatina definitivamente não serve.

Uma aulinha de fisiologia ajuda a entender: enquanto os momentos intensos dependem da energia rápida fornecida por algumas moléculas de ATP — aquelas recuperadas com a entrada da creatina em cena —, atividades longas consomem esse combustível resultante da quebra (ou oxidação) de nutrientes como carboidratos e gorduras.

Por isso, um pão integral com pasta de amendoim é melhor que a creatina nesses casos.

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Creatina faz bem para idosos?

Tendo em vista que mínimos ganhos musculares podem fazer a diferença para o organismo em determinados contextos, um grupo para o qual a creatina despontou como coadjuvante na prática de atividade física é o dos idosos.

Entre eles, que já sofrem com perda de massa muscular, processo inerente à idade, qualquer aporte (ou mesmo a manutenção) já seria bem-vindo.

Os idosos têm naturalmente menos creatina dentro do músculo por causa do envelhecimento, e tendem a consumir menos proteína pela dieta. Então, para aqueles saudáveis e ativos há, sim, uma indicação”, expõe o médico Ivan Aprahamian, da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).

“Mas ainda precisamos de novos estudos com aqueles que mais necessitariam desse aporte, os idosos com sarcopenia que não conseguem ser mais ativos”, pondera o especialista.

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Vegetarianos precisam de creatina?

A dúvida costuma pintar quando se tem em mente que esse público não consome alimentos de origem animal, as principais fontes de creatina na dieta.

Ao que tudo indica, embora a quantidade da substância em áreas nobres como o cérebro não seja diferente entre veganos e onívoros, a turma que só come comida de origem vegetal parece colher mais benefícios com a ingestão do suplemento.

“Veganos que treinam e tomam creatina costumam ter mais ganhos em termos de força e potência, porque realmente têm uma menor quantidade do composto nos músculos”, relata o nutricionista Filipe Testoni, da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).

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Quando a creatina não funciona: controle glicêmico, perda de peso, crianças e autismo

Diante da grande comoção atual que esse suplemento despertou, muitos benefícios para além do quadrado do exercício têm sido especulados.

Alguns são mentira pura, como dizer que a creatina é capaz de melhorar o controle glicêmico ou até auxiliar no emagrecimento.

“Não existe estudo que comprove isso”, sentencia o endocrinologista Clayton Macedo, presidente do Departamento de Esporte e Exercício da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).

“Inclusive, em pessoas com diabetes, principalmente em casos mais descontrolados, tem que se avaliar bem a indicação, pois uma das consequências da doença é a nefropatia, uma lesão renal. É fundamental pesar risco e benefício antes de suplementar”, ressalta o médico.

Outra indicação com ares de inverdade é que a creatina é um bom suplemento para o crescimento das crianças. A justificativa seria que, por eles produzirem (e consumirem) menos, uma dose extra viria a calhar.

“Mas essa ideia não é apoiada em ciência, em fatos, tanto que nenhuma sociedade séria de pediatria no mundo indica essa suplementação a crianças saudáveis”, contrapõe a pediatra Natascha Silva Sandy, coordenadora da Pós-Graduação em Gastroenterologia Pediátrica do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

“Em algumas doenças específicas, mais raras e de base genética, até há bons estudos com a suplementação. Mas é preciso analisar cada caso”, complementa.

Nesse terreno, a última ideia a viralizar foi a da creatina para tratar jovens com transtorno do espectro autista. Sandy rebate: “Não há lógica nem evidências embasando isso”.

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Investigações sobre creatina são cada vez mais constante, mas nem todas são confiáveis (Fotos: Sanny11/Getty Images e Fabio Castelo/Veja Saúde)

Creatina é boa para a saúde cerebral?

Nos últimos meses, também cresceu a propaganda de que a creatina daria uma força à central de comando do corpo, océrebro. As alegações envolvem desde melhora do foco e da memória até um efeito protetor contra doenças psiquiátricas e neurológicas, a exemplo do Alzheimer.

A ideia de que o suplemento seria proveitoso para a cabeça está dentro do que Gualano chama de zona cinza. Até existe uma plausibilidade biológica, ou seja, uma lógica de que a creatina daria um gás aos neurônios — células ávidas por energia rápida. Mas a ciência não comprovou nenhum efeito da suplementação.

Diante das promessas pelas redes sociais, é importante frisar: até agora, todas as evidências relacionadas a essas propriedades mentais são fracas e a administração de creatina não funciona como tratamento de nenhuma desordem cerebral.

“Quando se avalia o conjunto, não há sustentação para recomendar a creatina com esse possível efeito cognitivo. Na verdade, os artigos indicam o contrário, que não há efeito positivo na suplementação”, elucida Roschel.

“Plausibilidade biológica é apenas um norte a ser estudado, não aponta o desfecho clínico. Grande parte das coisas que a gente sempre acreditou que funcionavam na medicina se mostrou ineficaz em várias áreas e não se comprovou na prática”, raciocina o psiquiatra Luiz Dieckmann, diretor médico do Instituto Brasileiro de Farmacologia Prática (BIPP).

Dieckmann também afirma que é preciso cautela ao supor que a suplementação de creatina melhoraria a eficiência do cérebro e reduziria sintomas depressivos, pois não faz sentido trocar tratamentos validados por anos de pesquisa por alternativas que nem se sabe se funcionam.

Com relação à cognição em si, os defensores da panaceia citam muito um estudo de 2009 que mostrou benefícios cerebrais com uma metodologia supostamente controlada. Mas a população usada no trabalho eram soldados do Exército americano expostos a condições de estresse no deserto (calor intenso, pouca comida, restrição de sono e alta carga física). Um experimento assim não pode provar que a creatina melhora a cognição em pessoas saudáveis que vivem em sociedade em condições normais.

Mas será que o produto não daria nem aquela forcinha à memória? “Trabalhos que supostamente mostravam vantagens já foram barrados por problemas metodológicos que levaram a falsas conclusões positivas”, diz a nutricionista Jéssica Tosatti, pós-doutoranda do Ambulatório de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Antídoto para prevenir o Alzheimer, então? Nem pensar.

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Creatina como panaceia e os perigos de falsificação

Goste-se ou não — ou melhor, tome-se ou não —, o ponto é que esse endeusamento da creatina na internet fez a festa da indústria do wellness. Ela correu para lançar mil e uma versões do produto ou receitas enriquecidas com ele.

Depois do pó e das cápsulas, vieram as pastilhas sublinguais e as balinhas de goma do tipo gummy. Mais recentemente, a creatina foi acrescida a uma variedade de alimentos — de barrinha de cereais a tapioca.

A fé e o marketing são tão grandes que uma nutricionista postou um vídeo de alta repercussão dizendo que a substância deveria ser lançada na água das represas, já que seria ótima para a saúde.

O que se vê é que cresceu assustadoramente a banalização da suplementação”, analisa Macedo. “Tem muita gente usando creatina sem indicação e sem mesmo treinar, só pela moda”, observa o médico da Sbem.

Ao menos os órgãos regulatórios estão de olho nesse mercado. A Anvisa recolheu, por exemplo, uma marca de tapioca com creatina por considerar que o suplemento é destinado a adultos e não deve ser adicionado a alimentos comuns sem regulamentação.

No universo dos suplementos, enquanto empresas fazem e divulgam testes de pureza, também se espalha a falsificação da substância.

“Temos visto mais de uma instituição realizando a avaliação de composição, e é importante a gente abrir esse debate para fazer com que as pessoas fiquem mais atentas e não caiam em golpes, como o dos produtos que aparecem a um custo muito reduzido e diferente dos demais”, avalia Érika Carvalho, presidente do Conselho Federal de Nutrição (CFN).

Em sua última empreitada, a Anvisa conduziu a análise de 41 suplementos de creatina disponíveis no país, e apenas uma marca foi aprovada em todos os quesitos, que envolviam análise do teor de creatina, adequação de rotulagem e averiguação de presença de matérias estranhas.

A maioria apresentava inconsistências nas informações da embalagem. “O rótulo é a primeira camada de proteção ao consumidor. Infrações envolvendo a descrição do produto, alegações inverídicas ou não comprovadas ou mesmo falta de clareza quanto ao processo de fabricação expõem o cidadão a riscos”, comenta Andrey Correa, secretário-executivo do Conselho Nacional de Combate à Pirataria do Ministério da Justiça.

O pior é que já se detectou no mercado a presença de suplementos adulterados, alguns até com resquícios de anabolizantes.

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Dicas para garantir que a creatina é legítima (Formatação quadro: Letícia Raposo/Estúdio Coral/Veja Saúde)

Trabalho não vai faltar a entidades como o ministério e os conselhos profissionais. Se hoje vivemos a efervescência da creatina, no mínimo é preciso tomar uma dose de bom senso e outra de informação confiável antes de ceder aos apelos por aí.

Afinal, quem deveria ditar as prescrições não é a moda, mas a ciência.

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