De 2 a 5 anos: os novos mil dias críticos p…
Um número mágico para a infância, os primeiros mil dias de vida se tornaram um conceito-chave entre os pediatras, sintetizando um momento crítico para o desenvolvimento dos pequenos.
Da barriga da mãe até o segundo aniversário, nenhum período o supera em termos de evolução cerebral, o que abre uma autêntica janela de oportunidades para o futuro. Ao que tudo indica, nenhuma fase do crescimento da criança atraiu tantas pesquisas como essa. Mas… e os mil dias seguintes?
Pois eles são a bola da vez de uma corrente de estudiosos interessados em descortinar suas necessidades e potencialidades. Não se nega a relevância do primeiro milhar, quando a plasticidade dos neurônios e a formação de conexões entre eles estão no ápice.
Contudo, há muita coisa a rolar na cabeça e no corpo infantil entre os 2 e os 5 anos que merece atenção. A ponto de a prestigiada revista médica The Lancet dedicar recentemente uma série especial de artigos ao assunto.
Nesse novo degrau da existência, enquanto o crescimento físico desponta, o funcionamento do cérebro também segue a mil. É agora que começam a se aprofundar as competências adquiridas quando a criança ainda é considerada um bebê. Combinam-se avanços motores, intelectuais e psicológicos, inclusive superando dificuldades que podem surgir na etapa anterior.
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“O desenvolvimento do domínio emocional, cognitivo e social começa nos primeiros mil dias, mas é o aumento da maturidade das redes neuronais que favorece a rápida ampliação dessas habilidades nos mil dias seguintes”, resume a VEJA SAÚDE a psicóloga Catherine Draper, professora da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e uma das autoras do trabalho publicado na The Lancet.
“Mesmo se não comparássemos esse período àquele que vai de 0 a 2 anos, quando a formação de sinapses ocorre na maior velocidade da vida, cabe notar que as conexões entre os neurônios ainda se formam de modo muito acelerado até os 5 anos”, observa Liubiana Arantes, presidente do Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Ou seja: a janela de oportunidades aberta na primeira infância segue escancarada.
Há especialistas que preferem pensar nesses marcos da infância a partir da metáfora da construção de uma casa. Mesmo que você vá adicionando novos elementos com o tempo, a fundação que sustenta o edifício depende dos pilares iniciais. Daí a importância dos primeiros mil, ou melhor, 2 mil dias.
“Toda essa base tem de ser bem estruturada”, pontua o pedagogo Paulo Fochi, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul.
A criança dos 2 aos 5 anos
A partir do segundo milhar de vida, a criança terá uma avalanche de primeiras vezes que extrapolam os laços com a família imediata. Entre a escola e o parquinho, no contato com outros pequenos e gente grande, ela começa inclusive a criar e entender as concepções de humanidade e sociedade.
No campo da linguagem, é a hora de ampliar vertiginosamente o repertório. Surgem construções de frases mais complexas e alinhadas às demandas cotidianas.
É um salto comunicativo! Em paralelo, a criança já consegue avaliar as consequências de seus atos, tomar consciência do próprio corpo e, ao compreender a ideia de “início, meio e fim”, fazer relatos e planos.
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A identidade começa a se consolidar, de mãos dadas com a socialização. É dos 2 aos 5 anos de idade que a criança também passa a se enxergar como ser autônomo e independente da figura materna ou paterna.
O mundo se abre para o convívio com os outros que não vivem sob o mesmo teto e forjam-se novos e importantes vínculos — eis os amigos! Meninos e meninas se aprofundam nas noções temporais, espaciais e sociais, sabendo agora como se comportar, esperar e contrapor desejos e opiniões.
Se por um lado eles entendem que nem tudo é para já, superando as birras do imediatismo, por outro os responsáveis não podem adiar os cuidados para consolidar as fundações dessa casa de descobertas. “O que acontece em termos de desenvolvimento em uma criança durante um ano é o equivalente ao que para os adultos vai acontecer em dez”, compara Fochi.
Nesse sentido, cada um desses mil dias que estão por vir tem seu valor. E o acompanhamento com o pediatra, embora mais espaçado do que no primeiro ano de vida, continua sendo fundamental.

Ajuste fino
Um dos trunfos dessa fase da vida é que, não bastasse semear novos aprendizados e habilidades, ela ainda pode “corrigir” ou “ajustar” o que não ocorreu adequadamente nos mil dias anteriores.
“Com base nas evidências disponíveis, defendemos que há chances de recalibrar as trajetórias de desenvolvimento das crianças em áreas em que as oportunidades foram perdidas naquele primeiro momento”, diz Catherine.
Embora seja difícil intervir em situações que não dependem totalmente da família — caso de aspectos socioeconômicos e até mesmo ambientais —, já existem algumas pistas do que pode ser feito para fortalecer as aquisições e abrir horizontes.
“Para que a criança consiga aproveitar ao máximo o potencial do seu cérebro, ela precisa estar exposta a estímulos”, afirma, logo de cara, Liubiana.
Esse dever começa em casa e, à medida que o pequeno ganha o mundo, se espraia para os outros espaços que ele frequenta, da escolinha às aulas de música ou natação. Os estímulos não precisam ser específicos ou padronizados.
Pelo contrário: como tudo é novidade, é aconselhável que a criança tenha liberdade para explorar esses ambientes e fazer suas próprias descobertas, sempre com segurança e acompanhamento adequado.
Voltando à metáfora da casa: não é o momento de escolher a cor das paredes, mas de empilhar os tijolos para erguê-las. “Mais importante do que querer ensinar balé à criança é garantir que ela possa dançar, que ela possa saber o que seu corpo pode fazer enquanto ela escuta uma música”, exemplifica Fochi.
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Prato cheio para o desenvolvimento
Dar as melhores condições para o pleno desenvolvimento passa, também, pela alimentação. Tanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto o Ministério da Saúde brasileiro recomendam que a criança deve ser alimentada com leite materno até os 2 anos ou mais.
Na prática, isso significa que os mil dias seguintes são o momento em que, mais cedo ou mais tarde, a criança deixará a amamentação definitivamente para trás, criando uma relação ainda mais estreita com os alimentos.
Se antes o leite materno fornecia todos os nutrientes necessários, agora é preciso buscar vitaminas, minerais, proteínas, gorduras e outros componentes fundamentais para o organismo a partir daquilo que é colocado no prato.
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E pode ser necessário driblar a recusa e a aversão ao que é oferecido. “A depender do aspecto, da cor, do cheiro ou mesmo da temperatura da comida, a criança pode não se interessar”, expõe o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O segredo, se é que há um, está em balancear e diversificar as refeições, testar opções e ter paciência.
Da mesma forma que os estímulos sociais e cognitivos, uma relação saudável com a alimentação também depende dos pais e cuidadores. “Se a criança tiver uma oferta adequada de alimentos nos ambientes que frequenta, terá a opção de explorar e determinar o que ela quer ou não”, afirma Fisberg.
Mais do que disponibilizar a comida, não raro os pais precisam inclusive rever seus hábitos à mesa. Pelo bem deles e dos filhos. “Se a criança não tem um exemplo, não vai comer bem”, sentencia o pediatra.
Mas a responsabilidade não se esgota em casa. O artigo 227 da Constituição Federal, que regulamenta o Estatuto da Criança e do Adolescente, ressalta que a garantia da saúde e da alimentação aos mais jovens, entre outros direitos, é dever não só da família, mas também do Estado.
Esse pressuposto evoca o famoso provérbio africano: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Tal lição vai muito além de um prato de comida: significa que, para sustentar os futuros mil dias de desenvolvimento infantil, é necessário implementar políticas públicas que, da educação ao atendimento médico, assegurem as melhores condições para quem está nessa faixa etária.

Conceitos e direitos
A ideia de infância — e a necessidade de cuidarmos dela como sociedade — foi construída a passos lentos ao longo da história. Durante séculos, as diferenças entre essa fase e a vida adulta não eram efetivamente compreendidas ou delimitadas.
Mesmo quando essa noção surgiu, a elaboração de políticas públicas demorou a vingar. No Brasil, uma legislação de proteção só foi consolidada no Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990.
Mesmo assim, várias regulamentações ocorreram bem mais tarde. Foi apenas em 2009, por exemplo, que a Lei da Alimentação Escolar foi implementada. A medida prevê que todos os estudantes de escolas públicas tenham acesso à comida no colégio.
Hoje, o governo brasileiro conta com pelo menos 70 ações e programas dedicados à primeira etapa do crescimento infantil — mas restam desafios no acesso à educação e na mitigação de desigualdades sociais que repercutem no bem-estar das famílias e dos pequenos.
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O dossiê da The Lancet aponta que somente 30% das crianças entre 3 e 4 anos no planeta recebem o cuidado adequado em países de média e baixa renda. É uma multidão de 180 milhões que vivem sob algum risco ao redor do mundo — e apenas nessa faixa de idade. Corrigir essas carências traria retornos exponenciais, segundo os cientistas.
“Os benefícios em potencial oferecidos por programas universais de cuidados com a saúde e educação na primeira infância são de 8 a 19 vezes maiores do que o gasto para implementá-los”, argumenta Catherine. Um raciocínio que lembra o custo-benefício de administrar vacinas — outra ferramenta vital para o futuro das crianças.
Não se trata de impor nenhuma ideia mirabolante nesse sentido. As medidas são conhecidas e deveriam caber no orçamento público.
Incluem, segundo o documento divulgado, melhorias na remuneração de profissionais encarregados de cuidar das crianças, evitar ambientes lotados em sala de aula, garantir acesso a necessidades básicas nos locais que os mais novos frequentam, caso da merenda escolar, bem como disponibilizar consultas médicas periódicas.
Esse plano de ação, que ultrapassa as fronteiras entre o lar e o Estado, e é traduzido pelos estudiosos com a expressão em inglês nurturing care, ainda abrange a construção de um ambiente seguro para as crianças desenvolverem seus potenciais.
Nessa linha, levantamentos nacionais atestam que a violência doméstica e urbana representa um desafio para milhares de jovens, lesados do ponto de vista emocional, educativo e social e dotados de menos oportunidades em sua trajetória.

Uso de telas dos 2 aos 5 anos
Entre velhos e novos dilemas, caminhando para a terceira década do século 21 e seu bombardeio tecnológico, nunca foi tão relevante prezar o uso responsável das telas.
Com 3 ou 4 anos, dificilmente a criança não será exposta a tablets, celulares e computadores — até mesmo na escola pode acontecer —, mas isso não quer dizer que deverá ter passaporte livre para os conteúdos digitais.
Pelo contrário. “Existem inúmeros estudos comparando crianças expostas ou não às telas mostrando como a linguagem é radicalmente diferente entre elas”, ilustra uma das consequências do abuso Fochi. Mais do que ditar proibições, é preciso dar alternativas aos pequenos, especialmente brincadeiras ao ar livre e contato com outras crianças.
Por fim, é o tempo de incentivar a autonomia. “Às vezes, a criança não vai conseguir colocar uma água no copo sem derramar um pouco, mas é importante deixar que ela faça da forma dela e possa se aperfeiçoar”, exemplifica Liubiana.
E veja: independência não é sinônimo de ausência de limites e indisciplina. O diálogo é o melhor meio de equilibrar as demandas dos dois lados — a de pais e filhos.
Até porque, se o ambiente for tóxico, cheio de estresse, aquela janela de oportunidades começará a se fechar. E, nesses e nos mil dias a seguir, essa é a última coisa que uma família espera.
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