Sidarta Ribeiro: “Estamos sonhando muito mal”

“Precisamos resgatar a capacidade de sonhar de nossos ancestrais, reaprendendo a habitar o espaço onírico com os povos guardiões do sonho do nosso tempo.” Eis o grande desejo de um dos cientistas mais influentes do país, Sidarta Ribeiro.

O professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) dedica-se, há mais de duas décadas, a pesquisas sobre as tramas biológicas e psíquicas desses filmes que criamos, inconscientemente, de olhos fechados.

Autor do livro O Oráculo da Noite (Companhia das Letras –  clique aqui para comprar), que explora o papel fisiológico, comportamental e cultural dos sonhos, Ribeiro se aventura agora como curador de uma exposição inédita, Sonhos — História, Ciência e Utopia, em cartaz no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, até 27 de abril.

A mostra traz uma provocação para um dilema enfrentado por muitos de nós. “Estamos sonhando muito mal”, diagnostica o estudioso. E, esgotados, desvalorizamos o mundo onírico, apelamos a remédios para dormir e convertemos a vida em um pesadelo.

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VEJA SAÚDE: Em sua primeira exposição, você convida o visitante a resgatar a capacidade de sonhar. O que ganhamos ao dar mais atenção ao universo onírico?

Sidarta Ribeiro: O encontro com os sonhos é um encontro com o nosso mundo interior. Esse mundo pode ser entendido tanto como o inconsciente, segundo a psicologia analítica, mas também como uma realidade espiritual.

Independentemente da perspectiva que você adote, o fato é que, sem uma vida onírica consciente — isto é, sem a capacidade de resgatar na memória um sonho vivido durante a noite —, perdemos a capacidade de captar “recados” que deixamos para nós mesmos.

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Esse mundo interior e simbólico, no qual múltiplas apresentações podem dizer múltiplas coisas, é um mundo de resolução de problemas e de obtenção de novas ideias. Aliás, eu iria até além: é o mundo do qual a gente é feito.

Quando atravessamos a vida sem contato com os sonhos, tomamos decisões e agimos sem a devida consciência. Os sonhos são excelentes para nos avisarem sobre as consequências do que temos feito ou deixamos de fazer.

Quando a sociedade deixa de dar valor aos sonhos, como se vê hoje, está sujeita a encarar mais crises? Isso explica o momento atual?

O que estamos vivendo hoje é a construção de uma realidade em que as pessoas não pesam as consequências dos seus atos. Os sonhos são um espaço para descobrirmos os riscos de certas decisões, que talvez não percebamos no cotidiano.

É por isso que o mundo onírico é tão importante em tantas culturas diferentes — e assim o foi desde as primeiras civilizações. Nos últimos 500 anos, porém, o papel dos sonhos tem sido relegado.

Há meio milênio, a ciência tem transformado a economia e aumentado a produtividade em uma aliança muito profunda com o capital.

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Nesse processo, ela passou a substituir a capacidade de predição do sonho, que deixou de ser um espaço mental de criação e atenção e passou a ser um espaço inútil nesse nosso mundo em que tudo deve ser útil.

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Você diz que os povos originários preservam essa fonte de conhecimento dos sonhos. O que podemos aprender com eles?

O contato com os povos originários e com lideranças indígenas, como Ailton Krenak e Célia Xakriabá, nos leva a uma crítica profunda sobre o caminho e o futuro da ciência. Hoje, ela não tem uma bússola moral.

Ao mesmo tempo que a usamos para mitigar os impactos das mudanças climáticas e para desenvolver formas de prevenir e tratar doenças, também podemos criar pesticidas, explosivos e máquinas de destruição. A ciência não pode se tornar um instrumento do fracasso da nossa espécie.

Nesse sentido, o contato com os povos originários pode permitir que nos reorientemos, que recuperemos nossa capacidade crítica e que sejamos capazes de olhar para esse processo de desenvolvimento com os olhos sóbrios de quem vê o rastro de destruição pelo caminho.

Por isso que pessoas como Krenak e Antônio Bispo dos Santos insistem que não precisamos mais nos desenvolver, mas nos envolver. O planeta precisa se regenerar, e, nesse sentido, acho que o contato com os povos originários pode ser iluminador. Eles não perderam essa bússola moral. Nós é que nos esquecemos de que somos natureza.

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É aí que entram os sonhos?

Sonhar nos ajuda a nos reconectar com esse lado. Não apenas os seres humanos, mas todos os mamíferos sonham, além de outros grupos de animais. Sonhar é visceral, e, sim, ainda pode nos salvar.

Há espaço para a criatividade em um mundo sem sonhos?

Nesse mundo em que a gente não imagina e que os estímulos visuais são tão frenéticos e totalizantes, preenchendo todos os espaços da vida, quando é que a gente vai aprender a imaginar as consequências e soluções para o que estamos fazendo? Está difícil.

Eu me preocupo com as novas gerações nessa pandemia de telas. Eu diria que o sonho está morrendo tanto durante a noite, porque as pessoas dormem pouco e muito mal, quanto também durante o dia.

O sonho como devaneio, como imaginação, também morre. As pessoas já não querem nenhum tempo sem estímulo. O tédio é insuportável. Acho que isso representa um risco de morte para a poesia, a filosofia, o teatro, o canto coral e uma série de expressões do nosso mundo interior que deixam de ter vazão.

As pessoas estão plugadas da hora de acordar até a hora de dormir, e dormindo cada vez menos.

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Se sonhar faz bem à saúde, quais seus principais benefícios?

A gente pode pensar o sonho como uma necessidade da nossa e de tantas outras espécies, algo fundamental ao nosso bem-estar. Acessar os sonhos é abrir uma porta para o acesso a terapias.

Na psicanálise e na psicologia analítica, existe essa percepção de que os sonhos expressam desejos internos com os quais eu preciso entrar em contato. Mas tudo é muito centrado no indivíduo, no sonhador e na sonhadora.

Entre os povos originários, a gente vai perceber que essa noção é expandida. Não tem só a ver com o desejo de quem sonha, mas com o desejo dos outros.

Esse, inclusive, é o título de um livro que recomendo muito: O Desejo dos Outros (Ubu – clique aqui para comprar), de Hanna Limulja, uma antropóloga brasileira que estudou os sonhos dos yanomamis. É um livro extremamente valioso porque mostra que os sonhos são acontecimentos coletivos, que dizem respeito à realidade de uma comunidade.

Navegar pelo próprio desejo já não é fácil, mas navegar o próprio desejo num mar de desejos alheios, de outros animais, seres, plantas e entidades, é outra história. Uma pessoa que não quer dialogar com os desejos alheios vai entrar em colapso.

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Nesse sentido, os sonhos são muito importantes para a saúde social.

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E os sonhos também têm papel vital no nosso sono, correto?

O sono REM [sono com movimento rápido dos olhos], que é a fase do sono em que a gente sonha mais, está ligado também à regulação emocional.

Sua capacidade de experimentar um evento adverso e se recuperar, inclusive para poder enfrentar novos eventos sem traumas, depende crucialmente do sono REM e dos sonhos desse período.

E se nos privarmos dele?

Uma pessoa que está privada do sono REM tem baixíssima regulação emocional. Ela explode por qualquer razão, fica irritada, impaciente, intolerante. E, já que estamos em uma sociedade em que o sono está em risco, isso vai se tornando uma espécie de contágio.

Porque, se uma pessoa dorme mal e chega irritada ao trabalho, isso vai reverberar em todo mundo à sua volta. Provavelmente essas pessoas também dormiram pouco, e isso vai gerar um mal-estar geral.

Como é possível que, com tanta abundância de recursos, não encontremos uma saída? Eu acredito que parte do problema é porque estamos sonhando muito mal.

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Para tratar a falta de sono, muitas pessoas recorrem a remédios. É uma saída a ser considerada?

Precisaremos dormir a vida toda, então é importante que aprendamos a cultivar hábitos saudáveis para a hora de ir para a cama e evitemos a dependência de fármacos. Alguns deles não envolvem esse risco, como os fitoterápicos. Associados a outras medidas de higiene do sono, passiflora e várias outras ervas podem nos induzir a um estado de relaxamento e bem-estar.

Outro produto natural, mas que deve ser usado com parcimônia, é a melatonina. Só que, na maioria das vezes, ela é utilizada sem indicação e sem cuidados.

E existem as classes de medicamentos usadas para tratar distúrbios do sono, como a insônia: benzodiazepínicos, barbitúricos, drogas Z…

A questão é que essas pílulas para dormir não produzem um sono real, mas um simulacro dele, reproduzindo alguns aspectos fisiológicos do descanso. Por isso, tipicamente, as pessoas acordam cansadas e com problemas de memória devido a essas drogas.

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Sidarta Ribeiro é curador da exposição “Sonhos – História, Ciência e Utopia”, em cartaz no Museu do Amanhã (RJ) até abril (Mari Heffner/Veja Saúde)

Como remédios como o Zolpidem afetam nosso cérebro?

Um estudo recentemente publicado na revista científica Cell mostrou em detalhes os mecanismos pelos quais o sono natural é restaurador e o induzido por drogas desse tipo não.

Sobretudo o sono de ondas lentas, em que pulsos de noradrenalina vão promovendo uma limpeza do líquido cefalorraquidiano, fluido que circunda o sistema nervoso central. É quando toxinas vão sendo retiradas do cérebro e de estruturas adjacentes. Mas esse estudo mostra que o Zolpidem, uma das drogas mais utilizadas hoje em dia, não permite que isso aconteça.

Então a pessoa toma e vai para a cama achando que está dormindo bem e que está tendo os benefícios do sono, mas ela não tem a limpeza desses metabólitos, que incluem, por exemplo, a proteína beta-amiloide, que está relacionada a um maior risco de desenvolver Alzheimer.

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Mas por que é tão difícil manter uma boa rotina de sono?

Nós somos o que o [xamã yanomami] Davi Kopenawa chama de “o povo da mercadoria”. A gente vive em função da aquisição de objetos. Daí a pessoa troca o seu sono de qualidade, que ela poderia obter com medidas simples de disciplina, para ficar mais duas horas em frente a uma tela e depender do efeito de um remédio.

Assim, ela não tem os benefícios necessários e, depois de algum tempo, se vê prejudicada do ponto de vista físico e mental. Eu acredito que, nos próximos dez ou 20 anos, a gente vai observar um aumento da crítica sobre a indústria farmacêutica a respeito da responsabilização sobre casos de uso abusivo.

Muitas vezes as pessoas usam por anos a fio medicamentos que foram testados e aprovados para serem consumidos por apenas seis ou oito semanas. Vivemos em uma sociedade que tenta substituir uma fisiologia saudável pela medicalização. Temos remédios para tudo: para dormir, para acordar, para se sentir bem, para conseguir transar…

Nós estamos em um momento crítico, em que a indústria precisa se atentar ao risco de provocar novos problemas de saúde pública, relacionados à dependência dos produtos que estão sendo lançados, principalmente na área de saúde mental. Nesse contexto, o sono, que está na base do bem-estar psíquico, precisa ser protegido.

No seu livro As Flores do Bem (Fósforo – clique aqui para comprar), publicado pela editora Fósforo, você esclarece o interesse científico pela cannabis e outras plantas, como a ayahuasca. Elas podem melhorar nossa capacidade de dormir e sonhar?

Tanto a cannabis, que contém várias substâncias canabinoides e flavonoides, de efeito terapêutico, quanto a ayahuasca [infusão de duas ervas amazônicas, o cipó-jagube e o arbusto-chacrona] possuem substâncias que, de alguma maneira, induzem estados oníricos.

São psicodélicos clássicos. E, nos dois casos, invenções humanas.

A cannabis foi domesticada há cerca de 11 mil anos, na China, enquanto a ayahuasca é uma formulação mais recente, desenvolvida há aproximadamente um milênio por povos do oeste da Amazônia.

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Essas plantas, ainda marginalizadas, poderiam se transformar em tratamentos?

Existe um grande risco de apropriação cultural dessas substâncias. Há iniciativas que querem patentear a ayahuasca no Canadá para o uso dos princípios ativos no tratamento da depressão.

Mas, se alguém pode deter a patente da ayahuasca, são os povos amazônicos, que já estão se articulando para tratar a questão, como foi discutido durante a 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca, realizada em janeiro no Acre.

Em relação à cannabis, a indústria quer convencer as pessoas de que a única maneira segura de fazer o uso terapêutico da planta é por meio de princípios ativos purificados pela indústria. Há uma ideia de que só existe uma molécula “do bem”, o canabidiol, enquanto as outras são maléficas. Isso é uma mentira.

É como dizer que a única forma de prevenir o escorbuto é tomando vitamina C efervescente, e não comendo laranja. Basicamente, é como transformar a planta em um remédio tarja preta caro, porque a purificação desses compostos é custosa.

É preciso que as pessoas entendam que, na maior parte dos casos, elas não vão precisar de uma formulação industrial. Há aplicações terapêuticas envolvendo as folhas e as raízes, e de baixíssimo custo.

O que nós temos de fazer ao olharmos para essas medicinas desenvolvidas por povos originários é encará-las com respeito e sem o preconceito de achar que são primitivas, que necessitam de um carimbo acadêmico e universitário para se tornarem medicina. Elas já são.

E o contexto de utilização dessas ervas é tão importante quanto as substâncias que elas fornecem.

Por falar em contexto, a religião tem espaço na ciência?

Esse é um assunto tabu entre cientistas. A maioria segue uma visão que foi criada no século 19, de que a ciência é o oposto da religião.

Eu sou da linha que pensa que a ciência é filha da filosofia e neta da religião, e, portanto, um sistema de crenças com uma lógica interna muito eficaz, mas que também envolve dogmas, ritos, axiomas, heresias…

Hoje em dia, existe bastante evidência de que pessoas que adoecem e são adeptas de alguma crença apresentam uma recuperação melhor. Isso as ajuda a dormir melhor, alimentar-se bem, manter conexões familiares e sociais. É algo terapêutico.

Mesmo que essa crença seja apenas uma realidade mental e não possa ser medida pela ciência, é um fenômeno que deve ser respeitado pelo simples fato de trazer algum conforto aos indivíduos.

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Depois de livros de sucesso e uma exposição, a quais projetos você tem se dedicado atualmente?

Estou escrevendo um livro em parceria com um amigo meu, o psicólogo José Balestrini, que será publicado pela Companhia das Letras.

O título provisório é Arcana Mente, em que fazemos uma reconstrução dos últimos 2 milhões de anos de evolução dos nossos arquétipos mentais. É um diálogo entre neurociência, psicologia analítica, história, mitologia, antropologia… Vamos demorar alguns anos para terminar [risos].

Além disso, estamos aguardando a publicação de dois artigos relevantes por pesquisadores do Instituto do Cérebro da UFRN sobre a regulação das emoções durante o sono.

Durante o início do sono REM, nós temos uma redução bem evidente dos afetos extremos, tanto positivos quanto negativos. Então, você pode sonhar que está diante de um tubarão, mas o medo ou a aversão não estão lá. Queremos saber por que e como essa neutralização dos sentimentos ocorre.

Outro estudo recente nosso detalhou que dá para acelerar o processo de alfabetização e dobrar a velocidade de leitura de crianças usando um protocolo de bons hábitos de sono, que chamamos de Soneca. Atualmente, ele está sendo adotado por seis escolas no Rio Grande do Norte e torcemos para que, dando certo, se torne uma política pública.

Quer deixar um convite para que nossos leitores visitem a mostra Sonhos — História, Ciência e Utopia, no Rio de Janeiro?

Claro! A ideia da exposição é que as pessoas possam apreciar a ancestralidade do sonho, possam experimentar a atividade onírica como algo prazeroso e possam contrastar isso com o que a gente está vivendo hoje.

Com esse estímulo avassalador das telas, as notificações que não param de aparecer, a urbe que não para de nos perturbar… Na exposição, é feito um percurso do Paleolítico à contemporaneidade.

Ao final, é possível contemplar a vida de grandes sonhadores e sonhadoras que nos estimulam a valorizar nosso mundo interior.

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